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sexta-feira, 28 de abril de 2017

‘Não há mais leitores porque escola pública não forma bons leitores’, diz autor de Dois Irmãos

Daniela Ayres - G1 -11/04/2017
Milton Hatoum é patrono da edição 2017 do Festival Literário de Poços de Caldas, MG,
que começa em 29 abril
A menos de três semanas do início do Festival Literário de Poços de Caldas (MG), o premiado escritor amazonense Milton Hatoum está animado em retornar ao Sul de Minas. Há cerca de 10 anos, o autor do romance “Dois Irmãos” participou pela primeira vez da Flipoços. Patrono da 12ª edição do evento, que começa no dia 29 de abril, Hatoum aguarda a oportunidade de falar sobre o que mais gosta de fazer, literatura, e demonstra preocupação com a qualidade do ensino público no Brasil. “Não há mais leitores porque a escola pública não forma bons leitores”, observa em entrevista ao G1.

Aos 64 anos de idade, o escritor amazonense é considerado um dos mais importantes nomes da literatura contemporânea, com obras premiadas no Brasil e no exterior. A história dos encontros e desencontros dos gêmeos Omar e Yaqub, contada em “Dois Irmãos”, seu segundo romance, lançado em 2000, é leitura obrigatória em muitos vestibulares pelo país. Além de escritor, Hatoum tem formação em arquitetura, é tradutor e professor.

“Eu me formei no ensino público. Não posso reclamar, que os ‘Dois Irmãos’ e o ‘Cinzas do Norte’, principalmente, são muito lidos por causa dos professores. Mas não há mais leitores porque a escola pública não forma bons leitores. A escola é precária. A culpa não é dos professores, é do sistema e, sobretudo, dos políticos. Um país que não investe em educação não tem futuro mesmo. Não adianta.”

Hatoum manifestou sua preocupação com a qualidade do ensino público do Brasil durante entrevista aos G1 Sul de Minas, como parte de uma série de reportagens sobre a edição 2017 da Flipoços. Confira a seguir os principais trechos desse bate-papo.

G1: Como surgiu o convite para ser patrono da Flipoços e que o senhor planeja para a sua palestra, no domingo, 30 de abril?

Milton Hatoum: Eu fui a Poços há uns oito anos. Gostei muito da feira e fui convidado pela Gisele Ferreira [idealizadora do festival] a voltar, agora como patrono. Eu aceitei porque gosto de Minas, gosto de Poços, tenho ótimos leitores em Minas. Para mim, é uma honra ser o patrono da feira. Eu vou falar sobre o meu trabalho, sobre literatura. Vão exibir um filme baseado no meu romance ‘Órfãos do Eldorado’ [dirigido por Guilherme Coelho]. O filme vai ser exibido às 10h. O Amazonas vai ser homenageado, então eles vão exibir esse filme, que se passa no Amazonas e tem algumas locações no Pará. Eu tô animado para ir. Esse caminho para Poços lembra um pouco minha infância. Eu vinha às vezes passar as férias em São Paulo com minha mãe e ela gostava do circuito de águas.

G1: Por falar em “Órfãos do Eldorado”, seus livros ganharam nos últimos anos versões bastante aclamadas. Teve o filme em 2013 e, em 2016, seu segundo romance, “Dois Irmãos”, virou história em quadrinhos, com direito ao Prêmio Eisner, o “Oscar” da categoria. No início deste ano, o mesmo livro deu origem à minissérie de tv homônima exibida pela Rede Globo.

Hatoum: Primeiro lugar, eu tive sorte porque os cineastas e os quadrinistas são artistas muito talentosos, têm uma sensibilidade artística muito apurada. No caso dos quadrinistas, o trabalho é, de fato, muito bonito. Eu acho que 80% do livro está nos quadrinhos. Eles foram a Manaus, pesquisaram, há momentos de silêncios no trabalho deles. É um livro que já tem quatro reimpressões. Eu nem sabia que havia um público tão grande de quadrinhos. Eu não li o livro [se referindo a ‘Dois Irmãos’]. Então, para mim foi uma surpresa.

G1: O senhor não leu seu próprio livro?

Hatoum: Eu não leio o livro. Nunca. Eu não aguento. Vou querer mudar, vou ficar fazer várias alterações.

G1: Como é para o senhor o processo de criação de um livro?

Hatoum: Eu preciso encontrar a forma do livro na minha cabeça, a estrutura do que eu quero escrever. A estrutura é a forma. O que eu vou narrar, quem que vai narrar. Então, eu começo a escrever mesmo. Faço esquema, esboço. Eu escrevo a mão, depois passo para o computador, depois eu imprimo e vou corrigindo. Isso que dá muito trabalho. Escrever é um grande prazer. O que dá muito trabalho é a revisão. É mais cansativo, vamos dizer assim. Agora escrever é um prazer, eu não sofro não. Alguns escritores dizem que sofrem, né? Se eu sofresse, eu iria sofrer 8h por dia.

G1: E o que o estimulou a se tornar um escritor?

Hatoum: Foi a leitura. A leitura de romances em Manaus [cidade onde nasceu], ainda no ginásio. Eu tinha um avô, que era um libanês. Um ótimo contador de histórias, muito imaginativo. A voz dele atraía. E essas histórias também ficaram na minha cabeça. Eu tive bons professores e eu gostava mesmo de escrever poesia. Eu queria ser poeta na verdade. Eu estudei arquitetura, não deu muito certo. Depois eu achei a poesia muito difícil. Um bom poeta é dificílimo. Aí eu comecei a escrever contos. Foi a partir de um conto que escrevi meu primeiro romance, ‘Relatos de um certo oriente’.

G1: Esse ambiente em que o senhor cresceu acabou se tornando uma presença constante em seus romances.

Hatoum: Foi muito rico pra mim ter convivido com estrangeiros na própria casa. Meu pai falava português e a minha mãe era brasileira, mas falava português com a gente e árabe com os pais. Minha avó materna falava francês comigo porque ela era uma libanesa cristã, e, portanto, um pouco metida, foi educada em um liceu francês e queria que eu estudasse francês a todo custo, o que acabou acontecendo. E tem o lado que é o mais bruto da sociedade brasileira: as empregadas da minha casa e da vizinhança. Algumas eram índias, algumas nem falavam português corretamente e eram bastante humilhadas também. Eram moças que tinham sido educadas pelos missionários, depois se tornavam empregadas com a vida muito dura na cidade de Manaus. Isso me incomodou muito. E daí surgiu a Domingas de ‘Dois Irmãos’, de mulheres que trabalhavam não só na minha casa, mas em todas as casas de classe média de Manaus. Eu percebi uma estranheza na língua das mulheres, na língua dos meus avós, a música árabe, a comida árabe, a comida inglesa, que a minha mãe misturava com a comida amazonense. Era um pequeno Líbano amazonense caboclo em Manaus. Isso certamente foi forte para mim. A infância e a juventude são decisivas para quem quer escrever porque a literatura evoca o passado e reinventa também o passado.

G1: Suas histórias transitam por diversos meios de comunicação. O que o senhor acha da internet? De que forma o senhor acha que ela afeta a literatura?

Hatoum: A internet está acabando com as livrarias, não com a literatura. O comércio eletrônico prejudica as livrarias, sobretudo os pequenos livreiros. Minha questão é outra. Não é internet e literatura. É escola pública e literatura. É a formação da criança e do jovem brasileiro. Essa é a grande desfaçatez dos nossos dias. É a falta de vontade política para melhorar a qualidade de ensino público. Eu me formei no ensino público. Não posso reclamar, que os ‘Dois Irmãos’ e o ‘Cinzas do Norte’, principalmente, são muito lidos por causa dos professores. Mas não há mais leitores porque a escola pública não forma bons leitores. A escola é precária. A culpa não é dos professores, é do sistema e, sobretudo, dos políticos. No país dos ‘Crivellas’, ‘Malafaias’, ‘Felicianos’ e dos ‘Bolsonaros’, é impossível, é muito difícil melhorar a escola. Há prefeitos, políticos se esforçando, os professores também. Todos os meus livros são conhecidos graças aos professores e a muitos estudantes de pós-graduação. Um país que não investe em educação não tem futuro mesmo. Não adianta. Os festivais têm um alcance limitado. Não revertem a qualidade da educação. Só uma política faz isso. Os festivais são um estímulo, atraem públicos e, às vezes, alcançam os professores da região. Acho importante envolver professores no festival.

G1: Atualmente, o senhor está trabalhando em algum livro?

Hatoum: Eu escrevo um livro há quatro anos. O título provisório é ‘O lugar mais sombrio’. Não é um romance político, mas de jovens secundaristas e universitários que cresceram na época da ditadura militar e, mesmo não sendo um romance político- ao contrário, é um romance que tem uma história de humor-, é impossível não falar de política, no meu ponto de vista, de quem vivenciou aquele momento. São dois volumes. Eu terminei o que viria ser a sequência desse livro. Eu fiz o segundo volume primeiro.


Fonte: G1

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