Leia sempre, a leitura transforma.

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SIMBOLISMO


O sonho, de Pierre Puvis de Chavanes - 1883

A decadência econômica européia nas últimas décadas do século XIX põe por terra as esperanças positivistas e materialistas. Uma nova forma de encarar o mundo faz com que se retomem os valores até então adormecidos: o idealismo e o misticismo são revitalizados.

A partir de 1880, na França, berço do Simbolismo, verifica-se uma reação contra as concepções cientificistas da classe dominante, representadas na literatura pelo fatalismo naturalista e pelo rigor parnasiano. Falava-se em decadência, aumentavas as rivalidades entre a monarquia e os republicanos e sentia-se a perda da guerra de 1870 contra a Alemanha. A Europa vivia em estado de alerta, cada país procurava aumentar seus contingentes militares e aperfeiçoar os seus armamentos. Era o fantasma da guerra.

As conseqüências desse clima se farão sentir mais profundamente logo no início do século XX, e as últimas manifestações simbolistas e as primeiras produções modernistas serão contemporâneas da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e da Revolução Russa, em 1917.

Neste sentido, o Simbolismo surge não apenas como uma estética oposta à literatura (poesia, especificamente) objetiva, plástica e descritiva, mas como uma recusa a todos os valores ideológicos e existenciais da burguesia.

O artista experimenta agora, à maneira dos românticos, um profundo mal-estar na cultura e na realidade. Mergulha então no irracional, fugindo ao mundo proposto pelo racionalismo burguês, e descobrindo neste mergulho um universo estranho de associações de idéias, lembranças sem um significado definido. Universo etéreo e brumoso, de sensações evanescentes que o poeta deve reproduzir através da palavra escrita, se é que existem palavras para exprimi-las. O Naturalismo e o Parnasianismo estão definitivamente mortos, conforme sentenciou um crítico literário da época:

"Em uma época que, sob o pretexto naturalista, a arte foi reduzida somente a uma imitação do contorno exterior das coisas, os simbolistas voltam a ensinar aos jovens que as coisas também têm alma, alma da qual os olhos humanos não captam mais do que o invólucro, o véu, a máscara."

O Simbolismo define-se assim pelo anti-intelectualismo. Propõe a poesia pura, não racionalizada, que use imagens e não conceitos. É uma poesia difícil, hermética, misteriosa, que destrói a poética tradicional.


 

CARACTERÍSTICAS

Eugène Delacroix: A Morte de Sardanapal — 1827


1) SUBJETIVISMO
Os simbolistas retomam a subjetividade da arte romântica com outro sentido. Os românticos desvendavam apenas a primeira camada da vida interior, onde se localizavam vivências quase sempre de ordem sentimental. Os simbolistas vão mais longe, descendo até os limites do subconsciente e mesmo do inconsciente. Este fato explica o caráter ilógico ou o clima de delírio de grande parte de sues poemas, como no fragmento de Cruz e Sousa:

Cristais diluídos de clarões álacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos.

2) EXPRESSÃO INDIRETA DE IDÉIAS E EMOÇÕES

Para os simbolistas, a realidade deveria ser mostrada de maneira vaga, nebulosa, imprecisa, ilógica.


Füssli - O Pesadelo - 1790

“Descrever um objeto é suprimir três quartas partes do prazer de um poema, que é feito da felicidade de adivinhar-se pouco a pouco. Sugerir, eis o sonho. E o uso perfeito deste mistério é o que constitui o símbolo: evocar o objeto para expressar um estado de alma através de uma série de decifrações. Mallarmé


Associadas a essas características temos:
A utilização de palavras ambíguas;
A fuga da lógica discursiva;
O amplo uso de metáforas e sinestesias;
O hermitismo

3) MUSICALIDADE

Na tentativa de sugerir infinitas sensações aos leitores, os simbolistas aproximam a poesia da música. Entendamos: não se trata de poesia com fundo musical, mas poesia com musicalidade em si mesma, através do manejo especial de ritmos da linguagem, esquisitas combinações de rimas, repetição intencional de certos fonemas, sujeição do sentido de um vocábulo a sua sonoridade, etc. Realiza-se assim a exigência de Verlaine: "A música antes de qualquer coisa."

Somos atingidos pelo efeito dos ritmos e dos sons de qualquer poema simbolista, mesmo que não conheçamos profundamente o idioma em que ele foi escrito. Verlaine, por exemplo, deixou os mais célebres versos desta sedução pela música em Canção de outono:

Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.

A música é obrigatória, como nesta espécie de receita poética de Cruz e Sousa:
Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e torna-o musical e doce
Como se o coração, nessas supremas
Estrofes, puro e diluído fosse.

Mesmo a morte, na obra do simbolista brasileiro, possui uma terrível musicalidade:
A música da Morte, a nebulosa,
Estranha, imensa música sombria,
Passa a tremer pela minh'alma e fria
Gela, fica a tremer, maravilhosa...

4) IRRACIONALISMO E MISTÉRIO

No princípio, os simbolistas têm como projeto "revestir as idéias de uma forma sensível", isto é, traduzi-las para uma linguagem simbólica e musical. Pouco a pouco, este intelectualismo se converte numa aventura anti-intelectual, numa negativa à possibilidade de comunicação lógica entre os homens.

Arthur Rimbaud
"Nós não estamos no mundo", brada Rimbaud, o mundo concreto se esvaiu, perdeu sua inteligibilidade. Agora é puro mistério: atrás da ordem aparente das coisas estão o caos, a névoa, a bruma, a neblina, o incorpóreo, o fantasmagórico, o estranho, o inefável*.

Rimbaud considera o artista um vidente que foge da realidade ilusória e penetra na realidade inexplorada das sensações. Para adquirir esta vidência é indispensável um "desequilíbrio de todos os sentidos", uma ponte em direção ao ilógico e à loucura. Só os "alquimistas do verbo" podem enxergar além da obviedade do cotidiano e deparar-se com a essência misteriosa da vida. Cruz e Sousa chega a implorar pelo mistério:

Infinitos, espíritos dispersos,
Inefável, edênicos*, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos

Com a chama ideal de todos os mistérios.
*Inefável - indescritível, o que não pode ser expresso.
*Edênicos: que procedem do Éden, do paraíso

No plano sintático vocabular observam-se:
- Uso de vocábulos ligados ao místico e ao litúrgico: alma, desconhecido, essência, missal, breviário, hinos, salmos, ângelus etc.
- o emprego de iniciais maiúsculas no interior do verso, enfatizando o aspecto simbólico e alegorizante dos vocábulos.


O SIMBOLISMO NO BRASIL



1893- publicação de Missal e Broquéis (Cruz e Sousa)
1902- publicação de Os Sertões (Euclides da Cunha)

Apesar de vários antecedentes que prepararam o estabelecimento do simbolismo entre nós, considera-se o ano de 1893 como o marco inicial desse estilo de época no Brasil. É nesse ano que Cruz e Sousa publica dois livros: Missal - coletânea de poemas em prosa - e Broquéis - poemas em verso.

Em Broquéis aparece o poema "Antífona", considerado como profissão de fé do Simbolismo brasileiro.

Os parnasianos, até então na moda, se posicionam contra essa nova poesia, e começa a rivalidade entre as duas tendências. Aos novos poetas (os simbolistas) não foi dada a chance de se manifestarem através de jornais e revistas, todos voltados para o Parnasianismo. O pequeno grupo de simbolistas se agregou em torno de Cruz e Sousa. A morte deste, em 1898, provocou a desagregação do grupo, do qual participaram Nestor Vítor, Maurício Jubim e Artur de Miranda, entre outros.

Se na literatura européia o Simbolismo foi o precursor das tendências que marcam o início do século XX, no Brasil esse estilo de época mal conseguiu interferir na literatura "oficial", que era o Parnasianismo.

Devemos notar ainda que os simbolistas se alienaram dos principais problemas sociais do País na época.
Além de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, merecem destaque ainda no Simbolismo brasileiro: Pedro Kilkerry, Mário Pederneiras e Emiliano Perneta.

CARACTERÍTICAS


1ª) A poesia deve aproximar-se da música.
2ª) O poeta deve utilizar palavras ambíguas.
3ª) A realidade deve ser expressa de maneira vaga e imprecisa.




PRINCIPAIS AUTORES

CRUZ E SOUSA
(1861-1898)

João da Cruz e Sousa é considerado o mais importante escritor simbolista brasileiro.

Nasceu em Desterro (hoje Florianópolis), filho de escravos libertos pelo marechal Guilherme de Sousa, que adotou o menino negro e ofereceu-lhe a chance de estudar com os melhores professores de Santa Catarina. Foi seu mestre, inclusive, o sábio alemão Fritz Müller, correspondente de Darwin. Apesar da morte de seu protetor, conseguiu terminar o nível intermediário e, com pouco mais de dezesseis anos, tornou-se professor particular e militante da imprensa local. Aos vinte anos, seguiu com uma companhia teatral por todo o Brasil, na condição de "ponto". Durante estas viagens entregou-se à conferências abolicionistas. Em 1883, foi nomeado promotor público em Laguna, no sul da província, mas uma rebelião racista na pequena cidade, impediu-o de assumir o cargo, embora esta história seja contestada por algumas fontes.

Voltou a viajar e a cada regresso sentia a ampliação do preconceito de cor. Mudou-se então, definitivamente para o Rio de Janeiro. Lá se casaria com uma moça negra (Gavita) e conseguiria modesto emprego de arquivista na Central do Brasil, já no ano de 1893. Às inúmeras dificuldades financeiras somavam-se o desprezo dos intelectuais da época, que viam nele apenas um "negro pernóstico", o período de loucura mansa vivido pela esposa, durante seis meses, e a tuberculose que atacou toda a sua família: ele, a mulher e os quatro filhos. Numa carta ao amigo e protetor, Nestor Vítor, deixou registrado seu infortúnio:

"Há quinze dias tenho uma febre doida... Mas o pior, meu velho, é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada! Minha mulher diz que sou um fantasma que anda pela casa!"

Este mesmo amigo providenciou uma viagem do poeta à região serrana de Minas Gerais, em busca de paliativo para a doença. Mal chegando lá, Cruz e Sousa piorou e faleceu na mais absoluta solidão. Três anos após - já tendo enterrado dois filhos - Gavina também desapareceria por causa da tuberculose. O terceiro filho morreria em seguida. O último, vitimado pela mesma moléstia, desapareceria em 1915. A família estava extinta numa terrível tragédia humana.

Focalizando o drama da condição humana a partir de sua vivência interior individual, Cruz e Sousa produziu uma poesia que procura expressar o elemento transcendente, vago e nebuloso da vida.

À medida que sua obra vai-se tornando mais madura, Cruz e Sousa abandona o plano material, partindo para uma poesia metafísica, ligada às coisas do espírito.

Ao contrário do texto parnasiano, o simbolista exige do leitor um esforço de decifração, de "tradução" da realidade sugerida para a realidade concreta. A todo momento, o poeta apela para a linguagem metafórica:
"O demônio sangrento da luxúria..."
"Punhais de frígidos sarcasmos..."
"Ó negra Monja triste, ó grande soberana." (A lua)
"As luas virgens dos teus seios brancos..."
"O chicote elétrico do vento..."

A musicalidade se dá através de aliterações.
Sejam em v:
Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas
vagam nos velhos vórtices* velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas*...
*Sinestesias: correspondência entre as diversas sensações, sons, olhares e cheiros.
*Aliterações: repetição de fonemas no início, meio ou fim das palavras.
*Vórtices: redemoinho, turbilhão.
*Vulcanizadas: ardentes, exaltadas.

Sejam em m:
Mudas epilepsias, mudas, mudas,
mudas epilepsias
Masturbações mentais, fundas, agudas
negras nevrostenias*.

Os exemplos são infinitos.
Em s:
"Surdos, soturnos, subterrâneos desesperos..." Em f: "Finos frascos facetados" E assim por diante, sempre a "música antes de qualquer coisa." Vale a pena lembrar também que o escritor não ignorava a sinestesia, utilizando-a com frequência: "vozes luminosas" - "aromas mornos e amargos" - "claridade viscosa" - "vermelhos clarinantes", etc.

Da mesma forma, quando necessitado de novas palavras com sonoridade originais, ele não tinha vergonha de inventá-las: "purpurejamento - suinice - tentaculizar - maternizado, etc.

Temas básicos

No entanto, a poética de Cruz e Sousa vai além destes procedimentos estilísticos inovadores. A junção da linguagem estranha com três ou quatro temas recorrentes e profundos é que lhe garantiu o lugar privilegiado em nossa literatura. A rigor, os seus assuntos são limitados:
- A obsessão pela cor branca
- O erotismo e sua sublimação
- O sofrimento da condição negra
- A espiritualização

A obsessão pela cor branca

Roger Bastide desvela nos primeiros livros de Cruz e Sousa uma imensa nostalgia de se tornar ariano. O poeta parece ocultar as suas origens numa louvação contínua da cor branca. O branco em seus diversos tons, o branco da neve, do luar, da neblina, da bruma, do cristal, do marfim, da espuma, da pérola, das luzes e dos brilhos. O crítico contou em Broquéis cento e sessenta e nove referências a este universo de brancuras. O primeiro poema do livro, Antífona*, já é indicativo do que virá depois:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó formas alvas, fluidas, cristalinas,
Incensos dos turíbulos* das aras*
A lua, "fantasma de brancuras vaporosas", surge a todo instante:
Clâmides* frescas de brancuras frias
Finíssimas dalmáticas* de neve
Vestem as longas árvores sombrias,
Surgindo a Lua nebulosa e leve...

Névoas e névoas frígidas ondulam
Alagam lácteos e fulgentes* rios
Que na enluarada refração tremulam
D'entre fosforescências, calafrios...
*Nevrostenias: angústias, neuroses
*Antífona: versículo recitado antes ou depois da leitura de um salmo.
*Turíbulo: objeto para espargir incenso
*Ara: altar
*Clâmide: manto dos antigos gregos
*Dalmática: túnica *Fulgente: brilhante

Também as mulheres que estimulam sexualmente o poeta, em sua maioria, são brancas:
Braços nervosos, brancas opulências
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.
Erotismo e sublimação*

A mulheres surgem na obra de Cruz e Sousa como um símbolo de sensualidade. Mas ao contrário das figuras femininas de Olavo Bilac - descritas minuciosamente em sua graça corpórea, como esculturas belas e frias - as mulheres do catarinense aparecem, com freqüência, sob a forma de "cruéis e demoníacas serpentes" arrastando o poeta para convulsões, espasmos, anseios e desejos obscuros.

Estamos longe daqueles retratos parnasianos, emoldurados por um erotismo convencional. Cruz e Sousa prefere mergulhar nas sensações despertadas pelas "carnes tépidas":

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos* e enleios*,
Das harpas da emoção tantos arpejos*...

Estes "sentimentos carnais" exasperam o poeta em "febres intensas, ânsias mortais, angústias palpitantes" impelindo-o a necessidade de sublimar as "flamejantes atrações do gozo". É necessário transportar estes espasmos e desejos para o reino sideral e assim desmaterializá-los:

Para as Estrelas de cristais gelados
as ânsias e os desejos vão subindo,
galgando azuis e siderais noivados
de nuvens brancas a amplidão vestindo.
*Sublimação: Processo inconsciente de desviar a energia da libido para outras esferas ou atividades.
*Frêmitos: vibrações, arrepios.
*Enleios: laços, atrações.
*Arpejos: execução rápida e sucessiva de notas musicais.

Sofrimento da condição negra

Em Faróis e Evocações (poemas confessionais em prosa), Cruz e Sousa produzirá textos dolorosos e noturnos. A escuridão da noite - sempre associada à idéia de morte - substituirá o culto do branco e do erotismo. Estes dois livros correspondem à época da loucura de sua mulher, das maiores dificuldades financeiras, do preconceito de cor e do descaso dos intelectuais por sua obra. Como que lhe traduzindo a agonia interior, o estilo torna-se mais obscuro e tortuoso do que normalmente. O seu sentimento dominante é o de opressão, como se percebe em O emparedado:

Se caminhares para a direita, baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira. Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeito e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará do alto! Se caminhares, enfim, para trás, há ainda uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo - horrível! - parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará n'um frio espasmo de terror absoluto. (...) E as estranhas paredes hão de subir - longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...

O sofrimento da condição negra não se transforma em protesto racial, e sim em isolamento, solidão, aristocratização amarga. O Simbolismo é para ele uma forma de revolta contra a sociedade e contra suas próprias origens africanas, pelas quais sente, ao mesmo tempo, orgulho e pesar. O "emparedado" vinga-se das "paredes" que o asfixiam com a sua criatividade poética. É uma revolta estética, raramente quebrada pela denúncia social, a não ser em textos como Litania dos pobres:

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos
São espectros implacáveis

Os rotos, os miseráveis
São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas (...)

Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados(...)
Bandeiras rotas, sem nome,

Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

A espiritualização

A tuberculose veio culminar o processo trágico de Cruz e Sousa e sua família. Os tormentos atingem agora a plenitude, e a morte paira sobre tudo com sua túnica negra. Em Últimos sonetos, a linguagem parece se despir dos excessos anteriores e chega à perfeição. O poeta está diante do grande abismo e procura decifrar seu formidável mistério. Já não se trata apenas da angústia de um homem proscrito por causa de sua raça. O sofrimento, de fato, é inerente à condição humana. E, diante do fim, o artista experimentará sensações diversas, desde o desejo de dissolução na "Noite redentora" até a expectativa de ressurreição em outra vida.

Seu processo de espiritualização é difusamente católico: dá a impressão de que acredita na sobrevivência dos mortos, que estes serão restituídos a sua "verdadeira pátria", isto é, a pátria das almas e das essências platônicas, onde reina o "Transcendente", o "Absoluto" e onde, por fim, encontrará a paz:

Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!

A religiosidade filosófica permite-lhe - apesar de todos os dramas de sua vida - declarar-se um vencedor, como verificamos no seu derradeiro poema, o antológico Sorriso interior:
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsia e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio*.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

Mesmo que, em sua fé platônica-cristã, o poeta cante a esperança de uma outra vida, momentos de desespero e tristeza continuam aflorando em sua obra final. O soneto Vida obscura, que alguns julgam dedicado a sua própria esposa, e que outros vêem como um auto-retrato do artista, é a mais conhecida de suas criações:

"Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
o mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro
a vida presa a trágicos deveres
e chegaste ao saber de altos saberes,
tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
magoado, oculto e aterrador, secreto,
que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
sei que cruz infernal prendeu-te os braços
e o teu suspiro como foi profundo!

Manuel Bandeira sintetizou bem a poderosa poética de Cruz e Sousa:

Dos sofrimentos físicos e morais de sua vida, do seu penoso esforço de ascensão na escala social, do seu sonho místico de uma arte que seria uma 'eucarística espiritualização', do fundo indômito de seu ser de 'emparedado' dentro da raça desprezada, ele tirou os acentos patéticos que lhe garantem a perpetuidade de sua obra na literatura brasileira. Não há gritos mais dilacerantes, suspiros mais profundos do que os seus.

OBRAS

Poesia
- Broquéis (1893)
- Faróis (1900
- Últimos sonetos (1905)

Prosa
- Tropos e Fanfarras (1885)
- Missal (1893)
- Evocações (1898)


ALPHONSUS DE GUIMARAENS

(1870-1921)


Alphonsus Henrique da Costa Guimaraens nasceu em Ouro Preto, filho de um comerciante português e de uma sobrinha do escritor romântico, Bernardo Guimarães. Fez seus estudos preliminares na cidade natal e depois cursou Direito em São Paulo.

Nutre intensa paixão platônica pela filha do autor de A escrava Isaura, Constança, que morreria de tuberculose antes dos dezoito anos e, para quem escreveria muitos de seus versos. Retornou para Minas Gerais, exercendo a função de juiz em Conceição do Serro e, mais tarde, em Mariana. Casou-se com uma jovem de dezessete anos, Zenaide, com quem teve quatorze filhos e com quem encaramujou-se na vida privada, ao ponto de morrer praticamente na obscuridade, às vésperas da Semana de Arte Moderna.



Mineiro, passado quase toda a sua vida nas cidades barrocas e decadentes da região aurífera, Alphonsus de Guimarães sofreu as influências ambientais dessas cidades, povoadas apenas, no dizer de Roger Bastide, "de sons e sinos, de velhas deslizando pelos becos silenciosos, de vultos que se escondem à sombra das muralhas. Cidades de brumas, conhecendo as mesmas existências cinzentas e os mesmos fantasmas noturnos: donzelas solitárias, vestidas de luar." Sua poesia gira em torno de pouco assuntos:
• a morte da amada
• a religiosidade litúrgica



A morte da amada

É um tema dominante em sua poesia: a morte da noiva amada, a doce Constança, desaparecida na flor da mocidade. De certa forma, não conseguirá mais esquecê-la e, assim, os seus poemas de amor sempre se vincularão à idéias fúnebres. Amor e morte é uma velha fórmula romântica, mas Alphonsus a tratará de maneira diferente, fugindo do patético e alcançando um tom elegíaco*, onde predominam a melancolia e a musicalidade.

Nem o casamento, nem o passar do tempo ajudarão o poeta a atenuar esta tristeza. Em vários momentos, a dor parece mais uma convenção poética do que propriamente um sentimento real. No entanto, um soneto como Hão de chorar por ela os cinamomos guarda forte carga de emoção:

Hão de chorar por ela os cinamomos
Murchando as flores ao tombar do dia
Dos laranjais hão de cair os pomos
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão: - "Ai, nada somos,
Pois ela se morreu silente* e fria..."
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua que lhe foi mãe carinhosa
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?"
* Silente: silencioso, secreto.

A lembrança do sofrimento nunca o abandona, como se percebe em Ismália, espécie de balada, onde a loucura, a solidão e a morte se interpenetram:

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar

A religiosidade litúrgica

O desaparecimento precoce da noiva associado ao clima místico das cidades barrocas induzem Alphonsus de Guimaraens à religiosidade. Ao inverso de Cruz e Sousa cuja espiritualização é angustiada e filosófica, a do poeta mineiro não tem "arroubos ou iluminações fulgurantes", como diz Andrade Muricy.

Trata-se de uma religiosidade emotiva, feita de preces e crenças simples. Nada de abstrações metafísicas. Nada de indagações exasperadas. Seu catolicismo está mais próximo das fontes tradicionais da liturgia. Houve quem lhe apontasse um misticismo exterior e superficial, mas é forçoso reconhecer beleza na série de orações que dirige à Virgem Maria:

Doce consolação dos infelizes
Primeiro e último amparo de quem chora,
Oh! Dá-me alívio, dá-me cicatrizes
Para estas chagas que te mostro agora.

Aliás, a deificação de Nossa Senhora parece corresponder à sublimação do amor pela noiva morta. O arrebatamento religioso pela Mãe de Deus indicaria a troca de uma paixão concreta por uma devoção católica. Massaud Moisés fala em "platonismo místico" porque, ao encarnar esta paixão na figura da Virgem, "o poeta transcendentaliza e essencializa a mulher amada, conferindo-lhe o atributo de plenitude espiritual válido no contexto católico e de acordo com a sua sensibilidade cristã."

Ilustrativo das tendências simbólicas, místicas e musicais de Alphonsus é o seu poema:

A CATEDRAL

Entre brumas ao longe surge a aurora.
O hialino* orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol*.
A catedral ebúrnea* do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos*:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus! (...)

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino dobra em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!

Vocabulário:
Hialino: transparente
Arrebol: vermelhidão do nascer ou do pôr do sol.
Ebúrnea: de marfim
Responsos: versículos rezados ou cantados.

A obra de Alphonsus de Guimaraens apresenta muitos elementos românticos, como o amor espiritualizado, a evasão da vida, a religiosidade e a morte.

Em sua poesia de caráter mítico-religioso, não há lugar para a sensualidade ou o erotismo, aparecendo a mulher sempre divinizada. Parece que a morte de Constança, a sua grande amada, tornou-se o motivo principal de sua obra.

OBRAS

Poesia
- Setenário das dores de Nossa Senhora (1899)
- Câmara ardente (1899)
- Dona Mística (1899)
- Kyriale (1902)

Prosa
- Mendigos (1920)


OUTROS SIMBOLISTAS

No Rio Grande do Sul, o principal simbolista foi Eduardo Guimarães (A divina quimera, 1916). No Paraná, destacou-se Emiliano Perneta (Ilusão,1911). Na Bahia, surgiu a poética estranha de Pedro Kilkerry. Verdade que estes escritores ficam em segundo plano, diante da figura esplêndida de Cruz e Sousa, mas contribuem para a expansão de uma onda simbolista. Uma onda quase invisível, dado o domínio parnasiano e a posterior vitória modernista, e que só seria percebida nos livros iniciais de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles e Mário Quintana, todos com maior ou menor influência do Simbolismo.


O CASO PEDRO KILKERRY (1885-1917)




Nasceu em Santo Antônio (Bahia). Estudou em Salvador, onde se formou em Direito. Ao morrer, com apenas trinta e dois anos, não tinha ainda livro publicado, fato que persiste até hoje.

Redescoberto pela vanguarda concretista, Pedro Kilkerry é mais um desses casos estranhos que povoam a história literária. Criador isolado de uma poética fragmentária, feita de aliterações, onomatopéias e neologismos, levou a extremos as possibilidades de expressão abertas pelos simbolistas, aproximando-se do experimentalismo de alguns poetas modernistas. Veja-se "Horas ígneas":





"Eu sorvo o haxixe do estio*
E evolve um cheiro, bestial
Ao solo quente, como o cio
De um chacal.

Distensas, rebrilham sobre
Um verdor, flamâncias* de asa...
Circula um vapor de cobre
Os montes - de cinza e brasa."
* Estio: verão
* Flamâncias: brilhos

Em vários momentos, entretanto, esta poesia inovadora descai para a prolixidade e para o vocabulário pedante.