Eduardo Carneiro - UOL - 23/05/2017
Estudo e leitura levaram Joana D’Arc Félix de Souza a ser PhD em química pela renomada Universidade de Harvard.
Estudo e leitura levaram Joana D’Arc Félix de Souza a ser PhD em química pela renomada Universidade de Harvard.
“Toda mulher dá a sua vida pelo que ela acredita”. A frase é atribuída à Joana D’Arc, a famosa heroína francesa que viveu no século XV, mas pode muito bem ser usada para resumir a história de uma brasileira que tem o mesmo nome mais de 500 anos depois.
Joana D’Arc Félix de Souza, 53 anos, superou a falta de estrutura, a fome e o preconceito para se tornar cientista, PhD em química pela renomada Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. Hoje, ela soma 56 prêmios na carreira, com destaque para a eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim).
Desde 2008, ela também é professora da Escola Técnica Estadual (ETEC) Prof. Carmelino Corrêa Júnior, mais conhecida como Escola Agrícola de Franca, cidade do interior de São Paulo, e molda novas gerações a seguirem sua trajetória inspiradora.
Trajetória que começou na própria Franca: filha de uma empregada doméstica e de um profissional de curtume (operação de processamento do couro cru que tem por finalidade deixá-lo utilizável para a indústria e o atacado), Joana mostrou desde cedo que tinha aptidão para o conhecimento.
“Eu era a caçula de três irmãos, tinha certa diferença de idade, então minha mãe me levava com ela para o trabalho. Ela aproveitou que tinham jornais na casa da patroa e me ensinou a ler, para eu ficar mais quieta. Tinha quatro anos e ficava o dia todo lendo”, conta ela ao UOL.
“Um dia, a diretora da escola Sesi foi visitar a dona da casa e perguntou se eu estava vendo as fotos do jornal. Respondi que estava lendo. Ela se surpreendeu, me pediu para ler um pedaço e eu li perfeitamente. Coincidentemente, era começo de fevereiro e ela sugeriu que eu fosse uns dias na escola. Se eu conseguisse acompanhar, a vaga seria minha. Deu certo e com 14 anos eu já terminava o ensino médio”.
O mesmo curtume que deu ao pai casa (a família vivia numa pequena moradia oferecida pelo patrão) e trabalho por 40 anos acabou influenciando a jovem Joana na hora de escolher uma faculdade. Contando com a ajuda de uma conhecida, ela decidiu prestar vestibular em química, pois estava acostumada a ver profissionais da área atuando no trabalho com o couro.
“Uma professora tinha um filho que fez cursinho e pedi o material para ela. Meu pai e minha mãe não tinham estudo, mas me incentivavam. Eles tinham consciência de que eu só cresceria através de estudos. Passei a estudar noite e dia até entrar na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)”, relembra a pesquisadora, que não se deixou abalar pelo preconceito que sofreu até o tão sonhado diploma.
“As cidades de interior têm aquela coisa de sobrenome: se você tem, pode ser alguém, se não tem, não pode. Sempre enfrentei preconceito. Na minha segunda escola, mesmo sendo estadual, tinha aquela coisa de classe para os ricos, classe para os pobres, com tratamentos diferentes. Em Campinas, fora da universidade, também senti um pouco. Infelizmente, o Brasil ainda é um país racista. Pode estar um pouco mais escondido, mas isso ainda existe. Mas não usei isso como obstáculo, e sim como uma arma para subir na vida”.
A vida acadêmica
Joana, como previa, passou muita dificuldade em Campinas, a mais de 300 km de sua cidade natal. O dinheiro que recebia do pai e do patrão dele permitia que ela pagasse somente o pensionato onde morava, as passagens de ônibus e o almoço na universidade.
“Às vezes pegava um pãozinho no bandejão da universidade e levava para eu comer em casa à noite. Sentia fome, contava as horas para o almoço (risos). No final de semana também era complicado. Mas nunca desisti. Isso chegou a passar pela minha cabeça, mas não desisti. Fazer isso seria jogar tudo que tinha conquistado até ali no lixo”, afirma.
Sua situação só melhorou a partir do segundo semestre, quando começou a iniciação científica e teve o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “Quando recebi a primeira bolsa, corri para a padaria e gastei uns 50 reais em doces para matar a vontade”, ri.
Estimulada por professores a seguir na vida acadêmica e encantada pelo campo de pesquisa, Joana ainda concluiria mestrado e doutorado em Campinas – este último com apenas 24 anos. Um dos artigos da cientista saiu no Journal of American Chemical Society, e logo ela recebeu o convite para seguir os estudos nos Estados Unidos.
O pós-doutorado de Joana foi concluído na Universidade de Harvard. Um professor solicitou que ela aplicasse em seu trabalho um problema brasileiro, e ela optou pelos resíduos de curtume nas fábricas de calçados – desenvolveu a partir destas substâncias poluentes um fertilizante organomineral. Questionada sobre a condição de trabalho em solo americano e no seu país natal, a cientista aponta um fator que faz muita diferença.
“Nos Estados Unidos, eu pedia um reagente químico e em duas ou três horas conseguia. No Brasil, até eu arrumar dinheiro, fazer solicitação… Aqui tem mais burocracia. A questão de financiamento para pesquisa é bem mais rápida nos Estados Unidos”.
A brasileira ficaria mais tempo nos Estados Unidos não fosse uma tragédia familiar: sua irmã morreu aos 35 anos, vítima de parada cardíaca, mesma causa do falecimento do pai, apenas um mês depois. Joana decidiu voltar para o Brasil e cuidar da mãe e de quatro sobrinhos deixados pela irmã.
Novamente em Franca, a cientista procurou oportunidades em curtumes da cidade natal até que recebeu o convite para se tornar professora da ETEC em 2008.
“Quis desenvolver este trabalho de iniciação científica desde a educação básica, e o resultado foi excelente. Reduzimos a evasão escolar. A escola é tradicional, tem mais de 50 anos, e é agrícola. Muitos dos alunos são filhos de fazendeiros da região e não sabiam por que estudar. Muitos achavam que o ensino técnico era o fim, era o máximo que iriam conseguir. Mas, com as idas às feiras e congressos, eles começaram a pensar mais alto, em ir para a universidade, e não estudar só porque o pai manda”.
Colhendo os frutos
O trabalho com os resíduos de curtume é só um dos muitos de destaque que Joana executou nos últimos anos. Em especial, ela e sua equipe de alunos em Franca conseguiram desenvolver uma pele similar à humana a partir da derme de porcos. Isso ajudaria no abastecimento de bancos de pele especializados e de hospitais, além de baratear o custo de pesquisas, uma vez que a matéria-prima do animal é abundante e de baixo custo.
O projeto, com depoimento da cientista, está exposto até o mês de outubro no Museu do Amanhã (Rio de Janeiro). Ele é parte da mostra temporária “Inovanças – Criações à Brasileira”, que tem o intuito de revelar trabalhos inovadores de cientistas brasileiros, muitos deles desconhecidos do público.
Joana ainda comandou pesquisa que resultou na produção de um tecido ósseo feito a partir de materiais também encontrados na natureza: escamas de peixes e colágeno de curtume. Ela e alunos da ETEC vão em junho a uma feira em Oswegon, Estados Unidos, apresentar este projeto, juntamente ao da pele artificial a partir de tecido de porco.
Como resultado deste trabalho, a professora e cientista já soma 56 prêmios na carreira. Destaque para a eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim), além de projetos vitoriosos em concursos do Conselho Regional de Química do Estado de São Paulo e da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), que acontece anualmente na USP (Universidade de São Paulo).
Para Joana, porém, a maior recompensa vem no dia a dia. “Alguns jovens estavam no caminho errado, mas fazendo a iniciação científica encontraram um rumo. Eles tomam gosto pela pesquisa. Muitos pais vieram me agradecer, e isso é muito gratificante dentro da escola básica”, diz ela, antes de concluir: “as armas mais poderosas que temos para vencer na vida são a educação e o estudo”
Joana D’Arc Félix de Souza, 53 anos, superou a falta de estrutura, a fome e o preconceito para se tornar cientista, PhD em química pela renomada Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. Hoje, ela soma 56 prêmios na carreira, com destaque para a eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim).
Desde 2008, ela também é professora da Escola Técnica Estadual (ETEC) Prof. Carmelino Corrêa Júnior, mais conhecida como Escola Agrícola de Franca, cidade do interior de São Paulo, e molda novas gerações a seguirem sua trajetória inspiradora.
Trajetória que começou na própria Franca: filha de uma empregada doméstica e de um profissional de curtume (operação de processamento do couro cru que tem por finalidade deixá-lo utilizável para a indústria e o atacado), Joana mostrou desde cedo que tinha aptidão para o conhecimento.
“Eu era a caçula de três irmãos, tinha certa diferença de idade, então minha mãe me levava com ela para o trabalho. Ela aproveitou que tinham jornais na casa da patroa e me ensinou a ler, para eu ficar mais quieta. Tinha quatro anos e ficava o dia todo lendo”, conta ela ao UOL.
“Um dia, a diretora da escola Sesi foi visitar a dona da casa e perguntou se eu estava vendo as fotos do jornal. Respondi que estava lendo. Ela se surpreendeu, me pediu para ler um pedaço e eu li perfeitamente. Coincidentemente, era começo de fevereiro e ela sugeriu que eu fosse uns dias na escola. Se eu conseguisse acompanhar, a vaga seria minha. Deu certo e com 14 anos eu já terminava o ensino médio”.
O mesmo curtume que deu ao pai casa (a família vivia numa pequena moradia oferecida pelo patrão) e trabalho por 40 anos acabou influenciando a jovem Joana na hora de escolher uma faculdade. Contando com a ajuda de uma conhecida, ela decidiu prestar vestibular em química, pois estava acostumada a ver profissionais da área atuando no trabalho com o couro.
“Uma professora tinha um filho que fez cursinho e pedi o material para ela. Meu pai e minha mãe não tinham estudo, mas me incentivavam. Eles tinham consciência de que eu só cresceria através de estudos. Passei a estudar noite e dia até entrar na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)”, relembra a pesquisadora, que não se deixou abalar pelo preconceito que sofreu até o tão sonhado diploma.
“As cidades de interior têm aquela coisa de sobrenome: se você tem, pode ser alguém, se não tem, não pode. Sempre enfrentei preconceito. Na minha segunda escola, mesmo sendo estadual, tinha aquela coisa de classe para os ricos, classe para os pobres, com tratamentos diferentes. Em Campinas, fora da universidade, também senti um pouco. Infelizmente, o Brasil ainda é um país racista. Pode estar um pouco mais escondido, mas isso ainda existe. Mas não usei isso como obstáculo, e sim como uma arma para subir na vida”.
A vida acadêmica
Joana, como previa, passou muita dificuldade em Campinas, a mais de 300 km de sua cidade natal. O dinheiro que recebia do pai e do patrão dele permitia que ela pagasse somente o pensionato onde morava, as passagens de ônibus e o almoço na universidade.
“Às vezes pegava um pãozinho no bandejão da universidade e levava para eu comer em casa à noite. Sentia fome, contava as horas para o almoço (risos). No final de semana também era complicado. Mas nunca desisti. Isso chegou a passar pela minha cabeça, mas não desisti. Fazer isso seria jogar tudo que tinha conquistado até ali no lixo”, afirma.
Sua situação só melhorou a partir do segundo semestre, quando começou a iniciação científica e teve o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “Quando recebi a primeira bolsa, corri para a padaria e gastei uns 50 reais em doces para matar a vontade”, ri.
Estimulada por professores a seguir na vida acadêmica e encantada pelo campo de pesquisa, Joana ainda concluiria mestrado e doutorado em Campinas – este último com apenas 24 anos. Um dos artigos da cientista saiu no Journal of American Chemical Society, e logo ela recebeu o convite para seguir os estudos nos Estados Unidos.
O pós-doutorado de Joana foi concluído na Universidade de Harvard. Um professor solicitou que ela aplicasse em seu trabalho um problema brasileiro, e ela optou pelos resíduos de curtume nas fábricas de calçados – desenvolveu a partir destas substâncias poluentes um fertilizante organomineral. Questionada sobre a condição de trabalho em solo americano e no seu país natal, a cientista aponta um fator que faz muita diferença.
“Nos Estados Unidos, eu pedia um reagente químico e em duas ou três horas conseguia. No Brasil, até eu arrumar dinheiro, fazer solicitação… Aqui tem mais burocracia. A questão de financiamento para pesquisa é bem mais rápida nos Estados Unidos”.
A brasileira ficaria mais tempo nos Estados Unidos não fosse uma tragédia familiar: sua irmã morreu aos 35 anos, vítima de parada cardíaca, mesma causa do falecimento do pai, apenas um mês depois. Joana decidiu voltar para o Brasil e cuidar da mãe e de quatro sobrinhos deixados pela irmã.
Novamente em Franca, a cientista procurou oportunidades em curtumes da cidade natal até que recebeu o convite para se tornar professora da ETEC em 2008.
“Quis desenvolver este trabalho de iniciação científica desde a educação básica, e o resultado foi excelente. Reduzimos a evasão escolar. A escola é tradicional, tem mais de 50 anos, e é agrícola. Muitos dos alunos são filhos de fazendeiros da região e não sabiam por que estudar. Muitos achavam que o ensino técnico era o fim, era o máximo que iriam conseguir. Mas, com as idas às feiras e congressos, eles começaram a pensar mais alto, em ir para a universidade, e não estudar só porque o pai manda”.
Colhendo os frutos
O trabalho com os resíduos de curtume é só um dos muitos de destaque que Joana executou nos últimos anos. Em especial, ela e sua equipe de alunos em Franca conseguiram desenvolver uma pele similar à humana a partir da derme de porcos. Isso ajudaria no abastecimento de bancos de pele especializados e de hospitais, além de baratear o custo de pesquisas, uma vez que a matéria-prima do animal é abundante e de baixo custo.
O projeto, com depoimento da cientista, está exposto até o mês de outubro no Museu do Amanhã (Rio de Janeiro). Ele é parte da mostra temporária “Inovanças – Criações à Brasileira”, que tem o intuito de revelar trabalhos inovadores de cientistas brasileiros, muitos deles desconhecidos do público.
Joana ainda comandou pesquisa que resultou na produção de um tecido ósseo feito a partir de materiais também encontrados na natureza: escamas de peixes e colágeno de curtume. Ela e alunos da ETEC vão em junho a uma feira em Oswegon, Estados Unidos, apresentar este projeto, juntamente ao da pele artificial a partir de tecido de porco.
Como resultado deste trabalho, a professora e cientista já soma 56 prêmios na carreira. Destaque para a eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim), além de projetos vitoriosos em concursos do Conselho Regional de Química do Estado de São Paulo e da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), que acontece anualmente na USP (Universidade de São Paulo).
Para Joana, porém, a maior recompensa vem no dia a dia. “Alguns jovens estavam no caminho errado, mas fazendo a iniciação científica encontraram um rumo. Eles tomam gosto pela pesquisa. Muitos pais vieram me agradecer, e isso é muito gratificante dentro da escola básica”, diz ela, antes de concluir: “as armas mais poderosas que temos para vencer na vida são a educação e o estudo”
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